Entrevistas

Empresas do Norte que desistem de fundos europeus ultrapassam os 25%, diz António Cunha

Portugal pode tirar partido da reorganização das cadeias de abastecimento, diz o presidente da CCDRN. António Cunha acredita que o Norte vai resistir à crise, mas alerta que há "grupos de risco".

A incerteza gerada pela guerra na Ucrânia, a elevada taxa de inflação, a falta de matérias-primas, as dificuldades financeiras e a mudança de contexto estão a levar as empresas portuguesas a desistir dos projetos que já tinham recebido luz verde para obter apoio comunitário. No Norte, as taxas de quebra “são muito significativas”, diz, em entrevista ao ECO, o presidente da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte. “São superiores a 25%”, precisa António Cunha.

O responsável reconhece que a execução do Programa Operacional Regional do Norte vai exigir “um grande esforço”, mesmo que implique tomar medidas impopulares como retirar verbas a projetos que não têm execução. “Retirar verbas a projetos cuja execução não se perspetiva em tempo útil é algo que nenhum promotor vai gostar de ouvir. Mas tomaremos essas medidas quando for necessário” garante António Cunha. O presidente da CCDR Norte, o primeiro a ser eleito, alerta ainda que até aqui havia um “grande racional de privilegiar equilíbrios territoriais”, mas agora os “racionais serão dominados pelo objetivo de execução”.

Num momento em que o programa operacional do próximo quadro financeiro já está em discussão pública, António Cunha pede que não se repitam erros do passado de tentar nacionalizar os PO regionais, defende que o modelo de governação deve dar maior poder de decisão às autoridades de gestão e alerta que se o contexto de inflação elevada se mantiver ao longo do PT2030 então é necessário fazer “correções”.

Está satisfeito com o montante do Norte 2030 e com a forma como as verbas foram alocadas?

Seria muito estranho se estivesse satisfeito porque significaria que não havia a Norte suficientes projetos e ideias para preencher mais projetos. Certamente que pretendíamos ter uma verba maior. Sempre dissemos que Programas Operacionais Regionais com maior dotação era um caminho da gestão de proximidade que defendemos. Mas, face ao processo evolutivo, percebemos como esta verba foi encontrada e a lógica subjacente.

Em termos práticos estamos a falar do mesmo volume orçamental do PT2020, o que, ao fim de oito anos, representa uma perda significativa face aos números da inflação. Um dos dados positivos para ver esta questão é termos em conta que o PT2030 tem uma redução efetiva face ao PT2020 que não afetou os programas regionais.

Vê com maus olhos as condicionantes cada vez mais fortes que Bruxelas impõe à cabeça na negociação dos programas?

Concentrar 40% das verbas na Europa mais inteligente e na transição digital e inovação e 30% na questão ambiental são condicionantes com as quais estamos muito confortáveis. São abordagens que estão totalmente assumidas na nossa estratégia regional. Mas haverá outras que não, como por exemplo o modo como Bruxelas condicionou as nossas abordagens territoriais e as condicionantes que pôs à classificação de municípios – uma tentativa de os classificar de acordo com determinadas regras tendo subjacente um modelo teórico de grandes centros urbanos e depois de um espaço praticamente rural sem população.

É uma ideia que é totalmente distante do que é o Norte. Apesar disso, ao longo da discussão do programa houve uma discussão muito positiva, com uma intervenção forte do Governo que alinhou com as nossas teses e as defendeu. Apesar de o resultado não ser o ideal, é muito melhor do que quando começámos há um ano.

Uma intervenção mais ativa das CCDR na discussão do PT2030 teria ajudado?

Qualquer participação mais ativa das CCDR ajudará sempre. Se tivéssemos estado mais envolvidos em partes mais iniciais do processo e de maior formatação certamente que o resultado teria sido melhor.

A que atribui o facto de não terem sido?

Estamos a trabalhar num contexto de práticas governamentais e de certos modelos que a máquina do Estado tem. Apesar de estar a manifestar este desconforto, também devo dizer muito claramente que o nosso envolvimento foi maior do que no passado. Sob esse ponto de vista temos de reconhecer que houve uma tentativa de ir nesse caminho.

Gostávamos que a velocidade fosse maior. A máquina do Estado tem limitações que são conhecidas e certamente há pessoas com um pensamento diverso e que façam com que esta transformação se faça a um ritmo mais lento do que gostaríamos.

Esse desconforto também se fez sentir ao nível das negociações do PRR, onde todos foram ouvidos, mas todos dizem não ser ver refletidos nos resultados alcançados.

O PRR foi assumidamente um programa de pensamento centralizado, isso foi explicitado pelo Governo em devida altura. Foi um dos pressupostos base associados ao programa. No entanto, foi sendo referido que seria um programa de gestão participada. Hoje o que vemos é que o nosso envolvimento no PRR é diminuto.

Temos alguns projetos à gestão dos quais estamos associados, mas a participação na dimensão global do projeto é escassa. Ainda temos expectativa que isso possa ser corrigido em sede de execução do programa, mas até agora o nosso envolvimento é muito reduzido.

Esse distanciamento na gestão explica a demora em colocar o PRR no terreno?

Não queria especular, dada a informação escassa que existe sobre isso. Mas achamos que o envolvimento das regiões e a gestão de proximidade permite sempre uma resposta mais rápida e mais contextualizada.

Falando de velocidade, a execução do PT2020 está atrasada…

Ao dia de hoje, temos uma taxa de execução efetiva de 69% e virtual de 73,5%. A diferença são projetos que já estão aprovados, mas ainda não estão nos resultados finais, mas do ponto de vista prático estão executados e pagos. Estamos num processo difícil, a nossa meta do fim do ano são 82%, no qual estamos a pôr muita energia e atenção.

As dificuldades são diversas. Do lado dos apoios às empresas, há dificuldades financeiras das empresas, mudanças, uma grande dinâmica de incerteza, sobretudo no setor das PME. E do lado das verbas autárquicas, todos os processos associados a dificuldades burocráticas e administrativas e processuais, de concursos, vistos e pareceres. E, nesta ponta final, todas as dificuldades em torno das matérias-primas e aumentos de preços. Todo o contexto associado que é conhecido à área da construção.

Como vai a Norte o processo de libertação de verbas de projetos parados para alocar a outros em overbooking, a chamada bolsa de recuperação?

A bolsa de recuperação é um mecanismo que já foi usado no passado, está previsto. Temos 108% de despesa aprovada. Tem mesmo de haver projetos a cair sob pena de não termos dinheiro para todos. A bolsa de recuperação permitirá libertar verbas que poderão ainda servir para financiar alguns projetos. Já abrimos um concurso para autarquias, para alguns processos de final de ciclo (overbooking) mas cujas verbas não sejam muito grandes.

Tem uma verba prevista?

É difícil dizer quais serão os montantes. Preciso chegar a dezembro para dar um valor. Mas ao longo do último ano fomos já fazemos um processo muito grande de articulação com as autarquias e de reafetação de verbas dentro dos planos de investimento das autarquias nos últimos anos. Grande parte dessa realocação já foi feita, mas não está traduzida em números de execução.

Esta ponta final vai exigir muita energia do nosso lado. Temos de focar muita da nossa energia e atenção para assegurar uma execução total. Quando aqui chegámos no final de 2020 estávamos com um valor de execução extremamente baixo. O ano de 2021 correu bastante bem. Este foi um ano mais difícil. No próximo ano, haverá muitas obras a terminar e empresas a fechar projetos. Estamos convictos de que vamos cumprir as metas de execução, mas não quero deixar de reconhecer que isso será feito com grande esforço e determinação e com medidas que provavelmente serão desagradáveis.

Retirar verbas a projetos cuja execução não se perspetiva em tempo útil é algo que nenhum promotor vai gostar de ouvir. Mas tomaremos essas medidas quando for necessário. Até ao primeiro semestre deste ano em toda a execução do programa havia sempre um grande racional de privilegiar equilíbrios territoriais, agora vamos entrar num período onde certamente os nossos racionais serão dominados pelo objetivo de execução. É um paradigma que se vai notar a partir de agora.

Esses atrasos são sobretudo responsabilidade das empresas ou das autarquias?

Em termos percentuais, das empresas. Temos taxas de quebras muito significativas.

Consegue dar-me um valor?

São muito grandes, superiores a 25%.

Explicam-se pelo contexto de guerra e de inflação elevada?

Explicam-se por várias razões: contexto de guerra e de inflação, por vezes têm dificuldade em acompanhar o esforço financeiro que os projetos exigem, mas também o facto de quando a empresa se candidatou, há três anos, por exemplo, foi com um determinado projeto que tinha em vista um determinado cliente, havia uma determinada exportação e um determinado mercado.

Em dois anos a transformação é muito grande e, provavelmente, hoje a empresa já desistiu do projeto, não por falta de capacidade para o fazer, mas porque perdeu contextualização face a novas realidades. As causas podem ser muito diversas.

Está preocupado com a capacidade de Portugal acabar de executar o PT2020, executar o PRR que tem um prazo mais curto e com regras diferentes e executar o PT2030 que está a começar muito mais tarde?

Não lhe chamaria problema – quem tem uma verba destas para executar dificilmente se pode dizer que tem um problema – mas vamos ter um desafio durante anos. Do ponto de vista prático, a efetivação da despesa do PT2020 também começou bastante tempo depois. Se falarmos das autarquias começou mais de dois anos depois. Temos uma dificuldade adicional porque no PT2020 tem mais dois anos para ser executado enquanto que no PT2030 vamos ter apenas mais um. Mas, temos programas mais operacionalizados e serão mais ágeis na sua implementação.

Não posso dar uma resposta final porque ainda não é conhecido o modelo de gestão e de governação do programa. Mas a nossa expectativa é de que a flexibilidade e autonomia das autoridades de gestão serão maiores. E dentro daquilo que é a negociação com a Comissão Europeia, todo o conjunto de restrições, mapeamentos e enquadramentos que eram requeridos no passado, agora parecem mais estruturados. Da parte autárquica teremos fundamentalmente apenas um documento de referência, um plano de ação por entidade intermunicipal, seja Comunidade Intermunicipal ou Área Metropolitana. Acredito que vamos ser capazes de vencer esse desafio.

Que pistas têm sobre o modelo de governação?

O que está por resolver no Norte 2030 é o modelo de governação. Sempre dissemos que o envelope financeiro é importante. Não me passa pela cabeça relativizar a sua importância. Mas é igualmente importante o modelo que lhe vai estar associado – a efetiva regionalização do programa, que está mais regionalizado que os anteriores. Tudo indica que a capacidade de decisão será maior, vai no sentido positivo, mas é preciso que o modelo de governação esteja alinhado com essa vontade que esteve subjacente aos atores que estiveram a desenhar o Norte 2030.

Que as CCDR tenham mais poder na gestão dos programas?

Não é uma questão de poder, mas de capacidade de decisão. De ela efetivamente se colocar nas CCDR/autoridades de gestão e ter sempre presente que há PO Regionais porque há especificidades regionais e não repetir alguns erros do passado, de tentar nacionalizar os programas regionais, com avisos e medidas, apesar dos problemas regionais. Há uma normalização nacional e é tudo feito de acordo com um determinado figurino. Foi algo que aconteceu em vários momentos do programa e é algo que espero que não volte a acontecer.

A execução não é um problema, mas a elevada taxa de inflação é? O que espera que conste do pacote de medidas que o Governo vai apresentar em setembro para ajudar a mitigar estes efeitos?

Desde logo é importante o reconhecimento desta nova realidade que tem várias implicações na gestão de projetos, a possibilidade de correção de despesa e de correção de financiamento. Já houve uma evolução positiva e temos algumas medidas que permitem do ponto de vista legal que a despesa seja feita. Mas ainda não podemos aumentar o financiamento feito a um determinado programa.

Uma câmara municipal, que tem uma obra em construção que aumentou 20%, já está autorizada a fazer essa despesa adicional, a corrigir dentro dos valores acordados pelo Governo, mas se o fizer às expensas próprias. Ainda não temos um mecanismo para poder complementar com fundos comunitários adicionais. No futuro, se tivermos de executar o PT2030 com inflações significativas por ano, ao fim de três a cinco anos isso terá de ser revistotal como aconteceu no passado, com a introdução de mecanismos de correção.

Fomos tendo a esperança de que a inflação fosse um projeto conjuntural, neste momento há poucas dúvidas de que a realidade vai ser assim nos próximos anos, mas não sabemos qual o efeito e capacidade das políticas dos bancos centrais para conter este mecanismo. Mas se temos uma realidade marcada por um contexto de incerteza vamos ter de ter na gestão destes fundos mecanismos de reação a este tipo de realidades.

E sem ser no quadro dos fundos? Foi ouvido no âmbito da preparação deste pacote?

Não fomos envolvidos nesse processo. As medidas podem ser de natureza diversa, mas para nós é essencial a flexibilidade na gestão dos fundos e nas medidas de apoio à economia neste quadro de incerteza.

O Norte vai aguentar um quadro de persistência de incerteza, preços elevados, empresas de novo a recorrer ao lay-off? Estamos a voltar a um contexto de abrandamento?

Estamos numa situação de incerteza e de complexidade total. Por um lado, há um contexto hostil de aumentos dos custos de produção, nomeadamente da energia, que apesar de tudo têm nuances. Temos uma reorganização das cadeias de abastecimento, uma certa reorganização da globalização que passa para uma dimensão quase continental e não global, as cadeias globais mostraram-se muito eficientes, mas também pouco resilientes e sofremos esse choque hoje.

Portugal pode tirar partido desta reorganização, nomeadamente o Norte que tem uma estrutura produtiva bastante flexível com grande capacidade de ação e tecnológica, usar este processo para fazer aquilo que não tem sido capaz de fazer no passado, ocupar lugares superiores nas cadeias de valor e conseguir níveis de valor acrescentado para as suas produções. É o caminho que temos vindo a seguir, mas temos de o fazer com mais determinação. Temos dificuldades adicionais, mas também temos oportunidades que importa aproveitar e é no meio deste balanço que, tal como aconteceu noutras crises, o Norte resistir.

Este resistir não está imune a grupos de risco, empresas que precisarão de atenção especial e apoios especiais, nomeadamente ao nível dos consumidores intensivos de energia que terão, logo que possível, de fazer as mudanças adequadas a diminuir a sua fatura energética, mas também temos sinais muito positivos de empresas que estão no caminho certo e de crescimento.

À semelhança de outros países europeus, o Governo já deveria ter avançado com medidas para estes setores mais expostos?

Há tempos de resposta que dependem muito da gestão da política económica do país e é difícil para mim comentar, porque não tenho a informação total para essa análise.

Esperava uma atuação mais célere do Banco de Fomento para robustecer o tecido empresarial?

É um processo longo com alguns traumas do passado que está num fôlego. O Governo está apostado em trazer uma nova dinâmica e acho que há um processo de aprendizagem grande que foi feito no passado. Temos condições para o Banco ser aquilo que é necessário que seja, isto é, capaz de ser um efetivo parceiro da economia, articulado com estratégias regionais, ser capaz de fazer isto sem as lógicas que os bancos comercias tradicionalmente têm, que visam satisfazer os objetivos dos seus acionistas. Todos sabemos que há coisas que não correram bem no passado, mas temos todas as condições para que possam correr bem no futuro.

Fonte: ECO

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