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Nada se desperdiça e tudo se transforma na cortiça

Depois de uma drástica queda na primeira década do século, a indústria portuguesa da cortiça teve de se reinventar. Fábricas uniram-se a investigadores e começaram a recorrer a tecnologia avançada para diversificar a utilização desta matéria-prima nobre. Começaram a ser encontrados novos usos para a cortiça.

Numa altura em que tanto se fala de economia circular, as atenções parecem estar viradas para o aproveitamento do desperdício na produção de rolhas. Na indústria aeronáutica, por exemplo, é usado um compósito à base de cortiça para revestir os veículos espaciais, protegendo-os do calor na reentrada na atmosfera. Tudo o que é subproduto, ou seja, que não é rolha natural, tem várias aplicações.

Em termos ecológicos, é altamente sustentável. A sua extração não danifica o sobreiro e o processo de regeneração da cortiça promove um aumento da absorção de CO₂ pela árvore, sendo este um dos raros casos em que a intervenção humana é benéfica para o meio ambiente.

No Instituto de Materiais (CICECO), da Universidade de Aveiro, o investigador Rui Novais e a sua equipa estão a desenvolver novas aplicações para esta matéria-prima. “Tem características ímpares que possibilitam a sua utilização em aplicações que vão muito além do seu uso como vedante [rolha].” Por ser altamente sustentável, apresenta um grande potencial como material de construção, precursor de carvão ativado e de ecocerâmicas, enfatizou o cientista.

O seu grupo tem procurado usar a cortiça com o intuito de “remediação ambiental, como é o caso da extração de corantes (de efluentes industriais) e de poluentes persistentes (de águas de consumo), produção de combustíveis renováveis utilizando unicamente a energia solar (produção de hidrogénio) e ainda o desenvolvimento de materiais multifuncionais para o setor da construção”.

A sustentabilidade global do setor da construção

Em relação a esta última aplicação, Rui Novais destaca o ecocimento contendo cortiça (pirolisada), capaz de absorver, blindar e proteger os edifícios e os seus ocupantes da exposição às radiações eletromagnéticas. E ainda os compósitos multifuncionais à base de cortiça, que economizam energia e combatem as emissões de CO₂ no setor da construção, contribuindo, em simultâneo, para um maior conforto dos habitantes, ao regular os níveis de humidade e reduzir a poluição sonora. Por outro lado, a cortiça, devido à sua baixa condutividade térmica, pode diminuir o consumo de energia para o aquecimento e arrefecimento dos edifícios, uma vez que reduz as perdas energéticas. Trata-se, portanto, de um subproduto com uma menor pegada ecológica. Mais ainda: em caso de incêndio, não há libertação de gases tóxicos. Em suma, materiais inovadores que podem contribuir para a sustentabilidade global do setor da construção.

Para o investigador da CICECO, é inquestionável: “A cortiça será um dos materiais do futuro, principalmente no atual cenário de alterações climáticas, em que a sustentabilidade dos processos e das matérias-primas será um fator cada vez mais preponderante na seleção e definição dos materiais.”

Mas, para isso, sustenta, é necessário “uma mudança de paradigma, que eleve este material a outro patamar qualitativo”. E, para que tal aconteça, é fundamental apostar na colaboração estreita entre as universidades e a indústria. Já há várias estratégias, “mas com implementação incipiente”, aponta. O investigador deixa o apelo: “É importante reforçar a aposta na investigação e no desenvolvimento de novas soluções, usando a cortiça como matéria-prima de excelência.”

No futuro, acredita que materiais inovadores à base de cortiça poderão ter um maior valor acrescentado, como a indústria aeronáutica e espacial.

Do mesmo instituto, mas a trabalhar numa área radicalmente diferente, o investigador Nuno Gama, juntamente com o seu grupo de pesquisa, desenvolveu uma espuma de poliuretano com cortiça, recorrendo à tecnologia de impressão 3D, com potenciais aplicações no isolamento térmico e acústico. A “máxima” desta equipa é utilizar a cortiça para produzir materiais mais amigos do ambiente.

Também este cientista reforça as propriedades únicas desta matéria-prima, nomeadamente a sua densidade muito baixa, baixa condutividade térmica, resistência ao fogo, boas propriedades de isolamento acústico e ainda a sua elasticidade e carácter hidrofóbico (repelente de água), além de suportar grandes variações de temperatura e humidade. Ao mesmo tempo, é 100% natural e renovável, pelo que “é um dos materiais mais ecológicos de todos”. No futuro, acredita que materiais inovadores à base de cortiça poderão ter um maior valor acrescentado, como a indústria aeronáutica e espacial.

Diminuir a dependência do petróleo

Para Nuno Gama, mais do que uma matéria-prima do futuro, “devido às diversas e inovadoras aplicações que a cortiça já encontra hoje, pode ser considerada uma matéria-prima do presente”. Por fim, secunda, ao apostar nestes materiais inovadores, que substituem, ainda que parcialmente, o plástico, diminui-se a dependência do petróleo e contribui-se para a economia circular. Indo mais além, por ser um produto português – Portugal é o principal produtor mundial de cortiça -, a sua utilização impulsiona a economia nacional.

Numa perspetiva mais empresarial, falámos com o presidente da APCOR – Associação Portuguesa de Cortiça. De acordo com João Rui Ferreira, a indústria investiu, nos últimos 15 anos, mais de 700 milhões de euros em investigação e desenvolvimento (I&D), novas fábricas, novos processos, novas competências. Contudo, apesar da forte aposta, “o setor tem consciência de que não pode estagnar”.

Corroborando a opinião dos académicos, ressaltou “a abrangência de aplicações e atributos que nenhuma tecnologia conseguiu, até hoje, imitar, igualar ou ultrapassar”.Tratando-se da APCOR, é incontornável falar da importância das rolhas de cortiça para a indústria vinícola. A leveza – uma rolha contém cerca de 90% de ar ou gás semelhante, flexibilidade, elasticidade e compressibilidade garantem uma perfeita adaptação ao gargalo da garrafa. Adaptação essa que, por sua vez, também é dinâmica, acompanhando as dilatações e contrações que o vidro sofre devido às variações da temperatura ambiente. Garante-se assim a estanquidade da garrafa.

Já enquanto isolante térmico e acústico, “os 40 milhões de células em cada centímetro cúbico de cortiça funcionam como um autêntico absorvedor de decibéis, tornando-a um excelente isolante de som e de vibrações. A sua estrutura molecular permite absorver calor e conservá-lo por muito tempo”, prossegue.

A cortiça extraída do sobreiro é aproveitada na totalidade

João Rui Ferreira junta-se à voz dos investigadores, reforçando que a cortiça é uma matéria-prima 100% natural, 100% reutilizável e 100% reciclável, extraída dos sobreiros sem nunca prejudicar o normal desenvolvimento da espécie e sem danificar a árvore. E “a cortiça extraída é aproveitada na totalidade”, garante. Isto porque, depois de transformada, pode voltar a entrar no processo produtivo. “As rolhas de cortiça podem ser recicladas por trituração e o granulado resultante desse processo pode ser utilizado noutros produtos, desde o revestimento até objetos de decoração”, acrescenta.

Além da sua histórica utilização, desde o final do século XX que a cortiça tem vindo a crescer, sobretudo em áreas como o design para a sustentabilidade, ecodesign e a indústria da moda. Cada vez mais, segundo o presidente da APCOR, novas gerações de artistas procuram criar objetos do quotidiano (artefactos de mesa, cozinha, lazer, mobiliário) a partir de materiais 100% naturais e que contribuam para a sustentabilidade ambiental. Mas, também no desporto, arquitetura e arte, “os designers e estilistas têm-se apaixonado por este material e tentado encontrar novas formas de aplicar a cortiça, tirando o máximo proveito das suas vantagens”.

A cortiça tem surgido, ainda, como elemento diferenciador em áreas como os transportes, resultando em ganhos de eficiência ao nível técnico.

A par disso, “a consciência pela preservação do planeta, as suas credenciais e aplicabilidade multifacetada posicionam a cortiça como um pilar distintivo do nosso país e da nossa economia”. Para o empresário, “a cortiça é a representação da excelência e responde aos princípios fundamentais da economia circular, onde nada se desperdiça e tudo se transforma”.

Fonte: Diário de Notícias

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